CANHOTICES

...em Torres Novas, Ribatejo, Portugal. Do lado esquerdo da vida.

Publicada por zemanel |


CARLOS DE OLIVEIRA
DESCRIÇÃO DA GUERRA EM GUERNICA
I
Entra pela janela
o anjo camponês;
com a terceira luz na mão;
minucioso, habituado
aos interiores de cereal,
aos utensílios
que dormem na fuligem;
os seus olhos rurais
não compreendem bem os símbolos
desta colheita: hélices,motores furiosos;
e estende mais o braço;
plantano ar, como uma árvore,a chama do candeeiro.
II
As outras duas luzes
são lisas, ofuscantes;
lembram a cal, o zinco branco
nas pedreiras;
ou nos umbrais
de cantaria aparelhada;
bruscamente;
a arder; há o mesmo
branco na lâmpada do tecto;
o mesmo zinco
nas máquinas que voam
fabricando o incêndio;
e assim,por toda parte,a mesma cal mecânica
vibra os seus cutelos.
III
Ao alto;
à esquerda;onde aparece
a linha da garganta,a curva distendida como
o gráfico dum grito;
o som é impossível;
impede-o pelo menos o animal fumegante;
com o peso das patas, com os longos
músculos negros;
sem esquecer
o sal silencioso
no outro coração:por cima dele;
inútil; a mão desta
mulher de joelhos
entre as pernas do touro.
IV

Em baixo, contra o chãode tijolo queimado,os fragmentos duma estátua;
ou o construtor da casa
já sem fio de prumo,barro, sestas pobres?
quem
tentou salvar o dia,o seu resíduo
de gente e poucos bens?
oporà química da guerra,aos reagentes dissolvendo
a construção, as traves,este gládio,esta palavra arcaica?
V
Mesa, madeira posta
próximo dos homens: pelo corte
da plaina,a lixa ríspida,a cera sobre o betume, os nós;
e dedos tacteando
as últimas rugosidades;
morosamente; com o amordo carpinteiro ao objecto
que nasceu
para viver na casa;
no sítio destinado há muito;
como se fosse, quase,uma criança da família.
VI
O pássaro;
a sua anatomia
rápida; forma cheia de pressa,que se condensa
apenas o bastante
para ser visível no céu,sem o ferir;
modelo doutros vôos: nuvens;e vento leve, folhas;
agora, atônito, abra as asas
no deserto da mesa;tenta gritar às falsas aves
que a morte é diferente:
cruzar o céu com a suavidade
dum rumor e sumir-se.
VII
Cavalo;
reprodutor
de luz nos prados;
quando
respira, os brônquios;
dois frêmitos de soro; exalam
essa névoa
que o primeiro sol transforma
numa crina trémula
sobre pastos e éguas; mas aquimarcou-o o ferro
dos lavradores que o anjo ignora;
e endureceu-o de tal modo
que se entrega;
como as bestas bíblicas;
ao tétano, ao furor.
VIII
Outra mulher:
o susto
a entrar no pesadelo;
oprime-a o ar; e cada passo
é apenas peso: seios
donde os mamilos pendem,gotas duras
de leite e medo;
quase pedras;
memória tropeçando
em árvores, parentes,num descampado vagaroso;
e amor também:espécie de peso que produz
por dentro da mulher
os mesmos passos densos.
IX
Casas desidratadas
no alto forno; e olhando-as,
momentos antes de ruírem,o anjo desolado
pensa: entre detritos
sem nenhum cerne ou água,como anunciar
outra vez o milagre das salas;
dos quartos;
crescendo cisco
a cisco, filho a filho?
as máquinas estranhas,
os motores com sede, nem sequer
beberam o espírito das minhas casas;
evaporaram-no apenas.
X
O incêndio desce;
do canto superior direito;
sobre os sótãos,os degraus das escadas
a oscilar;
hélices, vibrações, percutem os alicerces;
e o fogo, veloz agora, fende-os, desmorona
toda a arquitectura;
as paredes áridas desabam
mas o seu desenho
sobrevive no ar;
sustém-no
a terceira mulher;
a última;
com os braço
serguidos;
com o suor da estrela
tatuada na testa.

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