CANHOTICES

...em Torres Novas, Ribatejo, Portugal. Do lado esquerdo da vida.

Publicada por zemanel |



Intervenção de José Casanova, Comissão Política do PCP, no funeral de Luiz Pacheco

Um dia, há mais de vinte anos, o Luiz Pacheco dirigiu-se à Sede da Organização Regional de Lisboa do PCP - o CT Vitória, ali na Avenida da Liberdade e disse-me: «Quero inscrever-me no Partido».
Confesso que esta intenção militante do Luiz não me surpreendeu por aí além – mas é necessário confessar, também, que, por razões óbvias, ela me deu uma enorme alegria.
Começou a preencher a ficha de inscrição, cuidadosamente, lentamente, a meio parou e disse: «Mas ponho uma condição».
E pôs a condição: «Quando eu morrer, quero ter um funeral como o do Ary: com a bandeira do Partido e com discurso».
Era uma condição razoável, mais do que razoável e, desde logo, assentámos que assim seria.
E assim está a ser: como ele quis que fosse.
A bandeira vermelha, com a foice e o martelo e a estrela de cinco pontas, lá esteve – e esteve bem - ontem e hoje, na Basílica da Estrela, cobrindo a urna e aqui está, completando a sua missão.

Falta, agora, a segunda parte da condição posta: o discurso – este de muito mais difícil e complexa execução.
Quando disse que queria discurso, o Luiz Pacheco, infelizmente, não especificou que tipo de discurso queria. Presumo, no entanto, que ele não estaria a pensar numa desenvolvida e extensa análise à situação política do momento, com as necessárias (e necessariamente contundentes) críticas à política do Governo – fosse ele este que aí temos ou um qualquer gémeo deste nos seus ataques constantes aos direitos dos trabalhadores, à justiça social, aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Por isso, não é esse o discurso que irei fazer.

O meu camarada Luiz Pacheco também não quereria, penso, que o exigido discurso se desenvolvesse em torno da história do PCP e do seu papel na sociedade portuguesa, do seu lugar na primeira fila da luta, sempre - desde os tempos da resistência ao fascismo até aos tempos actuais de resistência a uma política com demasiados cheiros ao antigamente.
Nem quereria que eu aqui viesse dizer que ele, Luiz Pacheco, espírito livre e independente, personalidade lúcida e irreverente, Escritor e personalidade singular, soube reconhecer no PCP o partido dos trabalhadores, com tudo o que isso significa, e fez dele o seu partido. Todos os que o conhecem sabem que era assim e muitos amigos dele que aqui estão hoje, ou que nas últimas vinte e quatro horas passaram pela Basílica da Estrela, sabem do orgulho com que o Luiz lhes mostrava o seu cartão de militante - «com as cotas em dia», como fazia questão de sublinhar.
E os que não sabem, ficarão a saber agora, por exemplo, da importância que o Luiz Pacheco dava à sua ligação ao Partido, de tal forma que, sempre que mudava de residência, a sua primeira correspondência era para informar os camaradas da sua nova morada; ou, outro exemplo, da importância que dava à leitura regular do Avante! que, a partir de determinada altura, passou a ser quase exclusivamente o seu jornal; ou, outro exemplo ainda, da alegria e da satisfação com que recebia a visita de camaradas e participava nas conversas à volta do petisco.
Por isso, não é esse o discurso que irei fazer.

Também não me parece que fosse desejo do Luiz Pacheco – ainda por cima tratando-se de um desejo exigido – que eu viesse aqui dizer que a sua morte é uma enorme perda para a Cultura Portuguesa; que ele é um dos escritores de maior importância do século passado, um estilista notável que marcou impressivamente a Literatura Portuguesa – e justificar tudo isto, lembrando «Comunidade», «O libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor», «Exercícios de Estilo», «Crítica de Circunstância»... enfim, a sua Obra e a sua escrita depurada e segura, ágil e viva, trabalhada, muito trabalhada, exemplar.
Por isso, não é esse, também, o discurso que irei fazer.

E a verdade é que, aqui chegado, acho que é altura de terminar este discurso que não chegou a sê-lo.

Para além do que aqui disse, para além de tudo o que aqui não disse – porque ele não quereria que o dissesse - fica a imensa saudade que o Luiz Pacheco deixa em todos nós. Saudade do Amigo. Saudade do Camarada. Saudade do Escritor. Saudade do Luiz Pacheco exactamente como ele era e pelo que ele era.
Uma saudade que, de algum modo, podemos ir matando… lendo-o. E, assim, confirmando-o como Amigo, como Camarada, como Escritor com lugar marcado na história da literatura portuguesa.
Até amanhã, Luiz Pacheco.

6 canhotices:

GR disse...

Conheci quando era nova Luiz Pacheco, comprava e lia com prazer os seus livros, alguns amigos (intelectuais) ficavam incomodados com a minha leitura, eu comprava e lia mais!
Compreendia-o, estimava-o!

Sobre o discurso do camarada Casanova foi tão genuíno, tão doce. Nada de lamechices. assim! directo como o nosso camarada escritor gostaria que fosse! Uma conversa entre amigos, um relembrar de situações. Com saudade e orgulho Casanova foi falando imperturbavelmente do Escritor, do Amigo, do Camarada (quase ninguém notou o aperto que sentia o seu coração!),Casanova falou serenamente e tão belas palavras disse.
Sobre o discurso do camarada Casanova…porque não estava à espera de ler um texto tão lindo, uma ode à Amizade… comoveu-me profundamente!

Parabéns pelo post.

GR

Anónimo disse...

Zémanel
Bem hajas por este poste, e pelas palavras de um grande escritorpara outro grande escritor que ,infelismente partiu,para sempre!
Ficámos mais pobres, o PARTIDO e os portugueses!
josé manangão

Maria disse...

Vou escrever aqui umas coisas porque sei que este blogue não é lido por muita gente.... ou seja, é lido só por gente especial.
Conheci o Luiz Pacheco, meu maníssimo, como ele dizia, quando ele foi para Caldas da Rainha. Porque eu sou de lá e, embora estando a estudar em Lisboa, ia para lá aos fins de semana. Foi na altura em que ele vivia já com a Irene e tinha os filhos, todos pequeninos, a viver numa casa emprestada pelo António Freitas. Não trabalhava, por opção. Dizia que não estava pra sustentar filhos da puta, foi sempre esta a linguagem dele. Eu teria aí uns 17 ou 18 anos. Havia outros amigos no grupo, frequentávamos o Café Central. Quantas vezes eu ia comprar pão à padaria mais próxima... eu e os outros, todos...
Havia (e ainda há) mais dois Luíses, em Caldas, que felizmenbte ainda estão vivos. Um artista cerâmico, o Luis Ferreira da Silva, outro já reformado e, porque não é conhecido pela sua actividade, não vou divulgar o nome. Os três Luíses (todos mais velhos do que eu) adoptaram-me como "mana", daí eu ser a maníssima. Porque já rebelde, já contestarária, já... nem sei bem o quê.
Mais tarde cruzei-me com ele em Lisboa. Quando andava pelo Bairro Alto (Trindade) e noutros sítios e vivia numa pensão na Baixa. Ele acompanhado, eu acompanhada, brindámos aos velhos tempos e à amizade. Depois veio o 25 de Abril. e foi uma sucessão de encontro e desencontros por aí....
O resto é sabido.
Vai fazer dois anos em Março disse a um dos outros dois Luíses que tínhamos que marcar uma visita ao Luiz Pacheco. No Verão passado disse ao outro. Que sim, que tínhamos que combinar etc. e tal. Visita que nunca chegou a ser feita. que já não será feita. Mas sei que da próxima vez que for a Caldas vou juntar-me aos outros dois manos e vamos beber um vinho, tinto, claro, em memória do Luiz Pacheco. Se possível na mesma tasca de sempre. Porque sim!
Perdemos, para além de um camarada, o libertino, o escritor maldito, o homem de pensamento completamente livre....
Obrigada pela partilha deste video.
Obrigada pelas memórias que me trouxeste.....
Um abraço.

GR disse...

Maria,

Tens momentos muito bonitos e de grande riqueza nas relações de Amizade.
Como gostei de ler os teus relatos de vida que, recordarás com grande saudade.
Partilhas-te naturalmente e com tal pormenor, que vi os três Luíses, uma jovem bonita e o cheiro gostoso do pão!
Importantíssimo este relato na primeira pessoa, entenderemos melhor o Escritor.
Obrigado,

Um doce bj,

GR

Margarida Araújo disse...

José não nos conhecemos, mas estive a ler o seu texto e quero-lhe dizer que eu estive em Agosto do ano passado com ele e fotografei-o a ler o Avante. Sou meia caldense e conheci em nova o Luiz e os outros Luises aqui referenciados também são meus amigos do peito.
Margarida Araújo

samuel disse...

Como disse a Maria, caro Zémanel, talvez venham aqui poucas pessoas... mas que "produzem" momentos bonitos, produzem!
Parabéns pelo post!

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