CANHOTICES

...em Torres Novas, Ribatejo, Portugal. Do lado esquerdo da vida.

19.3.07

JOSÉ LUÍS PEIXOTO: da primavera, dos pais.

Publicada por zemanel |


"Não há primavera se não imaginar erva fresca das palavras erva fresca ditas por ti; não haverá verão se não imaginar o sol da palavra sol dita por ti; não haverá outono se não imaginar o fundo do esquecimento da palavra morte dita nos teus lábios. Por isso, pai, no ar, o silêncio de ti é sofrer, no tempo que passa, no ar, no tempo que não passa já. Não passa o tempo, sustentando a mentira das coisas pequenas falsas que só já mudam de lugar, que apenas se sucedem, que unicamente tomam o sítio umas das outras, a mentirem, deixando rasto, restolhando o seu caminho com patinhas de rato entre arbustos secos mortos e os arbustos verdes e viçosos: e nasce o sol do ocaso último que morreu contigo; e brisas fingem as brisas verdadeiras que te tocaram o rosto; nem as nuvens nem o firmamento são os mesmos; apenas mentiras a substituírem mentiras a cada momento que não passa. Faltas tu a levar o tempo. Falta o teu olhar a guiar-nos se a chuva nos puxa. Pai, ter a tua memória dentro da minha é como carregar uma vingança, é como carregar uma saca às costas com uma vingança guardada para este mundo que nos castiga, cruel, este mundo que pisa aquele outro que pudemos viver juntos, de que sempre nos orgulharemos, que amámos para nunca esquecer.Descansa, pai, dorme pequenino, que levo o teu nome e as tuas certezas e os teus sonhos no espaço dos meus. Descansa, não vou deixar que te aconteça mal. Não se aflija, pai. Sou forte neste terra nos meus pés. Sou capaz e vou trabalhar e vou trazer de novo aqui o mundo que foi nosso. Vou mesmo, pai. O mundo solar.Reconhecê-lo-ei, porque não o esqueci. e também o tempo será novo, e também a vida. Sem ti e sempre contigo. A tua voz a dizer orienta-te, rapaz. Não se apoquente, pai. eu oriento-me . E vou. Anoitece a estrada no que sobra da manhã. Chove sol luz onde está o que os meus olhos vêem. A carrinha grande que prometeste, que planeaste para nós, que ganhaste a trabalhar meses, leva-me. Onde estás, pai, que me deixaste só a gritar onde estás? Na angústia, preciso ouvir, preciso que me estendas a mão. E nunca mais nunca mais. Pai. Dorme, pequenino, que foste tanto. E espeta-se-me no peito nunca mais te poder ouvir ver tocar. Pai, onde estiveres, dorme agora. Menino. Eras um pouco muito de mim. Descansa, pai. Ficou o teu sorriso no que não esqueço, ficaste todo em mim. Pai. Nunca esquecerei."

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