CANHOTICES

...em Torres Novas, Ribatejo, Portugal. Do lado esquerdo da vida.

Com os cumprimentos aqui da Gerência,
Artigo de José Ricardo Costa na edição desta semana do JORNAL TORREJANO:
FILMES PARAÍSO

No seu blogue canhotices.blogspot.com, o José Pereira escreveu um post sobre a recente votação dos 100 melhores filmes de todos os tempos. O Citizen Kane, como sempre, vem em primeiro lugar.
O que me traz aqui é o seguinte: o facto de José Pereira eleger o Cinema Paraíso como melhor filme de sempre, apesar de o considerar "algo mainstream e lamechas". Ora bem, eu não venho aqui para dar origem a um duelo ao sol entre Citizen Kane e Cinema Paraíso. O que me traz aqui é apenas o apesar da frase anterior.
Eu entendo perfeitamente o que José Pereira quer dizer. É também o que eu sinto quando assumo, sem complexos, gostar da pintura de Fragonard ou da Abertura 1812 de Tchaikovsky.
Porque sei que assumir estes gostos dá logo direito a uma condenação pelas farisaicas elites dos meios artísticos e intelectuais. É o que iria acontecer a José Pereira com a escolha do Cinema Paraíso. Dissesse ele tal monstruosidade no Lux, às 3 da manhã, de copo na mão, e iria dar com vários sorrisos cínicos à sua volta. Vale a pena reflectir sobre isto.
Tanto Citizen Kane como Cinema Paraíso são filmes belíssimos, enormes. E dois filmes que, na sua essência, são iguais: ambos falam de uma mítica infância perdida. Claro que um é de 1941 e o outro quase 50 anos mais novo. E existem grandes diferenças formais entre si. Admito mesmo que, enquanto obra de arte cinematográfica pura e dura, Citizen Kane seja superior.
Mas o que dá legitimidade a um para ser idolatrado, sendo o outro ignorado ou apenas um filme, vá, tolerado? Duas coisas: a relação da arte moderna com o sentimento e a emoção, e o sucesso comercial de um produto.
A arte moderna quase expulsou o sentimento e a emoção. Ou então fá-lo de uma forma depurada. A arte intelectualizou-se, tornando-se opaca para os olhos e os ouvidos do senso comum. O que sente, hoje, o cidadão comum perante uma tela de Tapies ou de Bacon? Ou a ler Joyce, Musil ou Broch? E a ouvir Xenakis ou Boulez?
O próprio Guernica de Picasso, uma obra "fácil" para o cidadão comum, provocará sempre uma distância entre o que olhos vêem e o coração sente. Os olhos percebem o horror e a violência da guerra. Mas não há ali uma retórica da emoção, a criação de um pathos como numa obra barroca ou romântica.
Cinema Paraíso é um filme que faz pele de galinha, sendo, por isso, desde logo, remetido para o purgatório do kitsch, da lamechice, da vulgaridade própria de um filme de domingo à tarde.
Mas imaginem uma pessoa, às três da manhã, no Lux, de copo na mão, dizendo maravilhas de O Grande Ditador de Charles Chaplin? Ou de Luzes da Ribalta. Dois filmes inundados de "lamechice". Neste caso não teria qualquer problema. Ficaria mesmo bem vista. Porquê?
Porque são filmes antigos, protegidos pelo rótulo de "clássico". Imaginem essa pessoa, às 3 e 20, já com outro copo na mão, dizendo a um cinéfilo encartado: "Ainda ontem vi o Casablanca pela oitava vez e continuo a emocionar-me com o hino francês". Estaria salvo.
Porque Casablanca é um clássico e a um clássico tudo se perdoa. Mas tivesse o filme sido feito em 1990, exactamente igual, só que a cores, e com o Tom Hanks em vez de Humphrey Bogart, e iria o pobre ser trucidado como o José Pereira com o Cinema Paraíso ou eu com o Fragonard.
O tempo afasta o cidadão comum dos filmes, formando-se à volta destes uma auréola elitista. Há mesmo uma certa nostalgia do antigo, do que está longe da última moda consumida pelas grandes multidões.
Filmes há que, no seu tempo, foram feitos para as grandes massas, sendo grandes sucessos comerciais, mas que, por terem deixado de o ser, se tornaram filmes de culto para elites. O cinema clássico americano está cheio deles. Fossem ainda sucessos comerciais e seriam tão alvo de desconfiança como o Cinema Paraíso.
Daí também a recuperação do Western Spaguetti ou da Série B. Ou se poder ver, hoje, cinéfilos a vibrar com um duelo entre Charles Bronson e Henry Fonda, ao som de Ennio Morricone. Há 30 anos teriam detestado, quando o povo das aldeias enchia o Virgínia para os ver, deixando o parque de estacionamento cheio de Zundapps. Seria suposto, sim, gostar de Resnais, Kubrick, Bergman ou Fellini.
Hoje, a mesma pessoa que, de copo na mão, disserta embevecida sobre a música de Ennio Morricone num western, é capaz de achar a música de Morricone lamechas em Cinema Paraíso.
Se o povo pode gostar de Cinema Paraíso, este passa a ser um filme tabu em certos meios. Só que, daqui a uns bons anos, quando já ninguém se lembrar do filme, provavelmente passará na Cinemateca para meia dúzia de cinéfilos encantados com a música de Ennio Morricone.
O juízo estético é também legitimado socialmente. O que é artisticamente bom ou mau, interessante ou desinteressante, belo ou feio, depende também de modas e da avaliação de certa classe ou grupo social.
E tal como a roupa, os destinos de férias ou os restaurantes que se frequentam, também os filmes julgados no pelourinho do clero intelectual são uma forma de emancipação social.
Uma coisa é certa. Há muitos filmes que não são bons pelo facto de as pessoas gostarem deles. As pessoas gostam deles precisamente porque são bons.
Citizen Kane é um deles. Cinema Paraíso, também. O José Pereira que se comova à vontade. O filme merece.

3 canhotices:

Anónimo disse...

Carta aberta à blogosfera portuguesa
http://compapasebolos.blog.com/

GR disse...

Depois se tivesses no LUX, estavas bêbado!
Como estás na blogosfera, distante da capital (nem tanto) és um sentimentalão!
Pois que fique com a critica de “mestre”!
O filme é lindíssimo!

GR

Anónimo disse...

Magnífico texto!
Às 3 da manhã no Lux (que eu não sei o que é nem onde é), com um copo na mão, a única emoção possível parece ser a bebedeira pós-modernista. Deixá-los beber. Eu vou (re)ver o Cinema Paraíso.

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